Vivemos em tempos duros, difíceis para a grande maioria das multidões, tal qual ou pior do que sempre foi bárbaro na Humanidade.
Preocupades, somos participantes do esforço coletivo de que a Política que rege a Lei das Águas não seja torpe.
Se quiser assinar também, e ainda tiver tempo, clique aqui. Abaixo o registro da Carta que será enviada ao Governo Federal.
Seguimos!
Carta em Defesa da Política das Águas
À Sua Excelência
Senhor Luís Inácio Lula da Silva
DD. Presidente da República do Brasil
Senhor Presidente,
Os que subscrevem a presente são entidades, cidadãs e cidadãos de todo o País que se empenharam na aprovação da Lei nº 9433, de 1997, que institui a Política Nacional de Recursos Hídricos – PNRH, e que, engajados em diferentes papéis, seguiram participando ativamente em esforços e ações para o êxito de sua implementação.
A aprovação dessa Lei representou um marco fundamental para implantar no Brasil uma adequada gestão das águas dos nossos rios, lagos e subsolo, visando sua proteção contra agentes poluidores, a prevenção e o planejamento para enfrentamento de secas e enchentes e, sobretudo, o atendimento às demandas de nossa população sem comprometer os necessários avanços econômicos e sociais.
Importante ressaltar que a PNRH introduziu virtuosa e sustentável visão de que Governo e sociedade devem ser parceiros constantes e imprescindíveis no cuidado com as águas. A partir dela, tornaram-se possíveis a construção do Sistema Nacional de Gerenciamento dos Recursos Hídricos, incluindo o Conselho Nacional de Recursos Hídricos – CNRH, o fortalecimento dos órgãos gestores estaduais e a criação de comitês de bacia, configurando um sistema democrático, descentralizado e participativo, sempre apoiados por uma Secretaria Nacional de Recursos Hídricos instalada no âmbito do Ministério do Meio Ambiente e com visão multisetorial. A partir de 2000, por força da Lei nº 9984, incorpora-se a esse Sistema, como órgão regulador e implementador da PNRH, a Agência Nacional de Águas – ANA, também vinculada ao MMA, propiciando um grande salto qualitativo ao processo.
Como é de conhecimento de V.Exa., a crise política nacional desencadeada a partir de 2016 abateu-se de forma destrutiva sobre políticas públicas em geral e desse desiderato devastador não escapou a PNRH, sobretudo no governo anterior ao de V.Exa. De lá até o presente momento, é notável a regressão institucional da política das águas.
Determinado a esvaziar e enfraquecer o Ministério do Meio Ambiente, o governo Bolsonaro transferiu para o Ministério do Desenvolvimento Regional – MDR a responsabilidade federal pela elaboração, deliberação e implementação da PNRH, aí incluídos o CNRH e a ANA. O resultado disso, dentre outros retrocessos, é que o CNRH praticamente deixou de funcionar, a atuação da ANA passou a responder quase que exclusivamente a demandas de uma única política setorial, acarretando evidente conflito regulatório, e a diretoria colegiada dessa Agência passou a ser progressivamente integrada por pessoas com visão divergente da proposta pela PNRH.
Pior, a ANA passou a ser orientada por propósitos corporativos e privatistas no uso da água. Reforçando essa orientação, evidentemente contrária à universalização do acesso a esse bem por todos os brasileiros e brasileiras, essa Agência recebeu em 2020 nova atribuição legal – editar normas de referência para a regulação do setor de saneamento básico. De fato, ela tornou-se agente promotor da implementação da Lei nº 14026, participando ativamente nas privatizações de empresas de saneamento básico. Tal desvio de conduta de uma reguladora, inédito na história da Agência, foi disseminado por sua estrutura funcional, fator que contribuiu para a perda de dinamismo da agora Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico – ANA perante sua missão originária.
O CNRH e os comitês de bacia, antes tão alvissareiros e decisivos para a gestão das águas, sobretudo nas bacias hidrográficas com situações hídricas críticas, perderam força e visibilidade, comprometendo a construção compartilhada de soluções sustentáveis para a boa distribuição da água, que permitam garantir aos múltiplos usos o suprimento de águas para o desenvolvimento social e econômico do Brasil.
Como decorrência dessa vertente privatizante, que passou a predominar sob a égide do MDR e com atuação da ANA, foi concebido e enviado pelo Poder Executivo ao Congresso Nacional o PL nº 4546, de 2021. Tal proposta, entre outras inconformidades, busca a instituição do mercado de águas e a privatização da gestão da infraestrutura hídrica nacional, contrariando o preceito constitucional que considera a água um bem público e, portanto, de acesso universal. Os mais vulneráveis, que dependem unicamente dessas águas nos rincões desse País, passariam, caso aprovado esse PL, a estar sujeitos às regras do mercado, situação que pode gerar enorme impacto econômico no âmbito da agricultura familiar e o desmantelo de políticas de segurança alimentar, em especial nas regiões mais pobres do semiárido brasileiro. Parece-nos urgente que esse PL seja retirado de pauta por iniciativa do governo, sob pena de que, caso prospere, venha a trazer prejuízos imensuráveis ao nosso povo mais empobrecido.
Igualmente necessitando de uma atenção especial do governo, tramita no Congresso Nacional o PL nº 2918, também de 2021. Se aprovado, ele simplesmente inviabilizará o funcionamento da ANA, pois lhe retirará a principal fonte para o seu financiamento, bem como impactará enormemente o já combalido Sistema Nacional de Gerenciamento dos Recursos Hídricos, maior beneficiário dos recursos alocados à ANA.
A Medida Provisória nº 1154, de 1º de janeiro de 2023, demonstrou a vontade expressa do governo de V. Exa. de resgatar o arcabouço institucional originário da PNRH ao devolver ao atual Ministério do Meio Ambiente e das Mudanças Climáticas – MMA a responsabilidade central pela elaboração e implementação da PNRH, inclusive corretamente revinculando a ANA e o CNRH a esse Ministério. Contudo, como vimos, o Congresso Nacional alterou essa medida ao aprovar o PL de conversão nº 14600, de 19 de junho de 2023, mantendo tais responsabilidades no agora intitulado Ministério da Integração e do Desenvolvimento Regional – MIDR. Os vetos de V. Exa. ao inciso IV e ao item b do inciso XI do art. 26 dessa Lei aparentemente resgatam um naco de responsabilidade do MMA no tocante à formulação da PNRH. Porém, ao não ter havido veto aos artigos 60 e 61, resultou que o CNRH seguirá sob responsabilidade do MIDR, ao qual a ANA também manterá seu vínculo institucional.
No MMA, a responsabilidade que lhe restou na formulação da PNRH será coordenada por instância no nível de um mero departamento – Departamento de Revitalização de Bacias Hidrográficas, Acesso à Água e Uso Múltiplo dos Recursos Hídricos, improvisado na Secretaria Nacional de Povos e Comunidades Tradicionais e Desenvolvimento Rural Sustentável, portanto, carente de adequação, visibilidade e empoderamento político. Já as responsabilidades do MIDR, aparentemente maiores, carecem, igualmente, de uma estrutura de governança compatível, pois também cabe a um departamento – Departamento de Recursos Hídricos e Revitalização de Bacias Hidrográficas, igualmente improvisado em uma Secretaria Nacional de Segurança Hídrica, a responsabilidade pela formulação da PNRH. Não é à toa que, nesse contexto, o CNRH e a própria ANA perdem força e, consequentemente, capacidade para garantir os recursos hídricos suficientes e necessários ao desenvolvimento sustentável do Brasil.
A situação relatada nos parágrafos anteriores é ilustrativa da governança diminuta, caótica, esgarçada e insustentável que hoje predomina no âmbito da PNRH. A regressão da política das águas está cobrando o seu preço e a tendência, caso não sejam corrigidas tempestivamente as distorções apontadas, é a conflagração de cenário desastroso.
As mudanças climáticas exacerbaram os riscos de desastres, sobretudo quando associadas à má gestão dos recursos hídricos, haja vista o ocorrido recentemente no litoral norte paulista. O padecimento do semiárido nordestino com secas recorrentes exige, mais do que nunca, mercê dessas mudanças climáticas e de uma gestão federal ainda desamparada, uma atenção mais especial ainda. A propósito, o Projeto de Integração do Rio São Francisco com Bacias do Nordeste Setentrional, mais conhecido como Transposição do São Francisco, tão caro a V. Exa., permanece pendente de uma gestão robusta, que garanta o cumprimento cabal das suas finalidades.
As grandes concentrações urbanas brasileiras estão sob risco permanente de colapso no abastecimento de água, haja vista a crise hídrica de 2014, que abalou a macrometrópole paulista, e a crise de 2016, que atingiu a capital federal. A dependência de nossa matriz elétrica na energia hidráulica, ainda predominante, torna o crescimento econômico do País extremamente vulnerável a fenômenos climáticos extremos, conforme recentemente observado na crise hidroenergética de 2021 na bacia do rio Paraná, agravada quando a gestão das águas encontra clara situação de desmantelamento.
No âmbito continental, tendo em vista o compartilhamento de nossas águas superficiais e subterrâneas com quase todos os países da América do Sul, o desmonte da nossa PNRH pode deixar de ser um flagelo interno e passar a se constituir ameaça à estabilidade e harmonia entre as nações sul-americanas.
Presidente Lula, sabemos perfeitamente o legado devastador sobre as políticas públicas que o senhor recebeu e sabemos quão difícil será sua superação. Confiamos, no entanto, na proverbial lucidez, espírito público e capacidade de liderar de V. Exa., pois, no que concerne ao desafio aqui trazido, a reestruturação e o fortalecimento da PNRH são estratégicos para o País e sua implementação, como nunca, precisa ser colocada no topo da agenda governamental.
Sabemos, também, da relevância do MIDR e dos seus órgãos vinculados para a gestão da infraestrutura hídrica do País, bem como da necessária busca de sua sustentabilidade econômica, social e política, o que, claramente, não será alcançada pela proposta do PL nº 4546/2021 em tramitação no Congresso Nacional. No entanto, é clara a necessidade de que o MMA possa ser estruturado para tocar a PNRH, pois é ali o lócus mais adequado à necessária visão sistêmica e multisetorial da gestão das águas, mitigando conflitos e garantindo a cara sustentabilidade exigida mundialmente para lidar responsavelmente com os nossos recursos naturais.
Para esse desiderato, solicitamos que seja constituída força-tarefa, sob a coordenação da Casa Civil, com participação objetiva do MMA e em diálogo franco e aberto com as instâncias do Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos, para, em prazo determinado, debater e propor o resgate da política das águas, reforçando seu caráter democrático, descentralizado, participativo e comprometido com o presente e o futuro desta grande Nação.
De nossa parte, estaremos na trincheira, propondo e articulando um movimento nacional permanente em defesa da política brasileira das águas e, caso requerido, prontos para colaborar com o governo de V.Exa. e com os demais poderes constituídos.